ORÇAMENTO PÚBLICO E DIREITOS DA MULHER: O GASTO PÚBLICO PARA REDUÇÃO DA DESIGUALDADE DE GÊNERO
REDAÇÃO – O orçamento público é o principal instrumento de realização de políticas públicas sociais, e não há surpresa nisso. Todos os direitos e garantias previstos pela Constituição Federal pressupõem uma atuação pelo Estado, seja ela positiva ou negativa, e, com isso, um custo econômico indissociável, que constitui gasto público e será suportado pelas finanças do Estado.
As políticas públicas de distribuição direta de renda, embora satisfaçam necessidades imediatas no curto prazo, mostram-se pouco eficazes, no médio e longo prazo, para a redução da desigualdade. Ademais, a existência de recursos orçamentários, per se, não implica a satisfação das necessidades sociais, na busca pelo bem público.
Orçamentos públicos não são neutros à questão de gênero (notgenderfree). Homens e mulheres são distintamente atingidos pela norma orçamentária. Com a Conferência Mundial da Mulher de Nairobi, em 1985, introduziu-se o conceito de transversalidade de gênero (gendermainstreaming), o qual, desde 1995, é adotado como uma das estratégias para políticas da Organização das Nações Unidas(ONU) para promoção de igualdade de gênero. De acordo com o Conselho da Europa, a transversalidade de gênero compreende“a (re)organização, melhoria, desenvolvimento e avaliação de processos políticos, para que uma perspectiva de igualdade de gênero seja incorporada em todas as políticas em todos os níveis e em todas as etapas, pelos atores normalmente envolvidos na formulação de políticas”1.
Ainda, segundo o Instituto Europeu para Igualdade de Gênero (EuropeanInstitute for GenderEquality – EIGE)2, a transversalidade de gênero implica na adoção de uma perspectiva de gênero na preparação, estruturação, implementação, monitoramento e avaliação de políticas públicas, leis regulatórias e gasto público, com viés para a promoção de igualdade entre homens e mulheres, no combate à discriminação.
Não é nova a noção de orçamentos sensíveis a gênero. Diversos países, há décadas, já adotam em seus sistemas jurídicos alguma forma de avaliação e controle do gasto público sob o prisma da questão de gênero. Na América Latina, segundo estudo do FMI, merecem destaque as medidas implementadas pelo México, Equador, El Salvador e Bolívia, em seus respectivos ordenamentos jurídicos.3
No Brasil, a iniciativa veio, em 2003, com a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e, no ano seguinte, com a edição do I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – PNPM. Nos anos de 2021 e 2022, foram publicados os relatórios “A Mulher no Orçamento”, cujo objetivo é “identificar o conjunto de despesas fixadas que contribui para reduzir o hiato entre os dois grupos demográficos”.4
Desde a Lei nº 10.933/2004, que aprovou o Plano Plurianual 2004-2007, o qual elencou a promoção da “redução das desigualdades de gênero, com ênfase na valorização das diferentes identidades” como um dos desafios para a orientação estratégia de governo, os Planos Plurianuais subsequentes também estabeleceram previsões nesse sentido.
A simples previsão normativa, na Lei Orçamentária, de propósitos voltados ao combate da desigualdade de gênero ou mesmo a reserva orçamentária para políticas desse tipo, todavia, estão longe de assegurar que, primeiro, essas sejam executadas e, segundo, surtam os pretendidos efeitos positivos e eficazes para as mulheres. Nessa conjuntura, um dos grandes obstáculos à efetividade das políticas de gênero repousa na falta de transparência fiscal e na ausência de mecanismos de controle do gasto público.
Com o objetivo de endereçar o problema, a Lei nº 14.802/2024, que instituiu o Plano Plurianual da União para o período de 2024 a 2027, no seu art. 4º, incluiu as “mulheres” nos temas denominados “agendas transversais do PPA 2024-2027”. Ademais, no § 2º, do referido art. 4º, estabeleceu-se que “as metas de indicadores serão desagregadas por gênero e raça/etnia para os objetivos estratégicos e específicos com público-alvo definido, sempre que possível.” e, no § 6º, do art. 17, estabeleceu que o relatório de avaliação de políticas públicas, deverão enfatiza r os impactos de gênero e raça/etnia, quando possível.”. Ainda é cedo para avaliarmos os resultados destas importantes mudanças, mas as vemos com esperanças de melhores indicadores que permitam endereçar este importante obstáculo à efetividade das políticas de gênero.
É também oportuna a menção ao grande e comemorado progresso no tema obtido por meio da publicação da Lei nº 14.214/2021, que instituiu o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, para assegurar a oferta gratuita de absorventes higiênicos femininos e outros cuidados básicos de saúde menstrual. O citado Programa, nos termos do artigo 2º da Lei nº 14.214/2021, visa combater a precariedade menstrual, bem como oferecer garantia de cuidados básicos de saúde e desenvolver meios para a inclusão das mulheres em ações e programas de proteção à sa&u acute;de menstrual. Consoante roga o mesmo dispositivo, a pobreza menstrual é entendida como “falta de acesso a produtos de higiene e a outros itens necessários ao período da menstruação feminina, ou a falta de recursos que possibilitem a sua aquisição”5.
Orçamentos sensíveis a gênero visam aumentar a participação das mulheres na tomada de decisões financeiras e na elaboração e execução da norma orçamentária, bem como fortalecer a responsabilidade do Estado com relação aos compromissos assumidos de fomento à igualdade de gênero.6Não se trata de um orçamento segregado para mulheres, mas de um enfoque interpretativo para a análise da contribuição do orçamento público com relação à alocação do gasto público para aperfeiçoamento de políticas sociais de igualdade de gênero.
Há estudos econômicos que evidenciam que quanto maior a igualdade de gênero, maior tende a ser o proveito econômico. Dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), em estudo de 2018 intitulado “Economic gainsfromgenderinclusion: new mechanisms, new evidence”, revelam que os óbices impostos ao acesso da mulher ao mercado de trabalho, decorrente da desigualdade de gênero, por conta de fatores sociais, culturais, distorções do ordenamento jurídico e do sistema tributário – vide a tributação regressiva do Imposto de Renda, no Brasil, que afeta de modo mais severo as mulheres – acarretam um custo econômi co significativo. Por outro lado, a eliminação de tais óbices conduz a benefícios ao bem-estar e ao crescimento maiores do que os estimados, já que mulheres e homens se complementam no processo de produção, gerando um benefício adicional em termos de crescimento, decorrente do aumento do emprego das mulheres, como observado pelos economistas Ostry, Alvarez, Espinoza e Papageorgiou.7
De acordo com o estudo em referência, a diversidade de gênero e a realocação setorial seriam os dois principais fatores do crescimento econômico impulsionado pela redução da desigualdade de gênero.
A alocação eficiente do gasto público, sob a perspectiva de gênero, diante disso, deve não apenas destinar recursos financeiros para as áreas em que já há maior concentração feminina, mas também realocar recursos para a pulverização da presença da mulher nos setores nos quais a presença feminina ainda é insipiente. O gasto público deve ser estruturado com vistas ao alcance da equidade de gênero. Tudo isso deve ser tomado em conta, na formulação de políticas públicas, para que se possa falar em um orçamento sensível a gênero.