Combate à violência no lar é prioridade no Vale do Aço
Iniciativas pioneiras de enfrentamento à violência doméstica e a criação de uma rede de proteção para as vítimas, com ações para conscientização e transformação dos agressores e mudanças culturais desde a infância, estão sendo compartilhadas, fortalecendo a estrutura de apoio à mulher oferecida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). Essa tem sido uma das contribuições do projeto Justiça em Rede contra a Violência Doméstica, da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Comsiv).
A juíza Beatriz Auxiliadora Rezende Machado, que integrou a Comsiv no biênio 2018-2020, teve a oportunidade de buscar soluções na prática e no diálogo com colegas. Na avaliação da juíza, que atua como cooperadora da vara com competência sobre os processos de violência doméstica em Timóteo, no Vale do Aço, o Justiça em Rede é relativamente novo no Tribunal, mas tem grande importância e alcance, e dá continuidade e aprofundamento a ações mais antigas desenvolvidas, de forma bem-sucedida, em diversas comarcas mineiras.
A iniciativa permite estabelecer etapas claras para que a consolidação da rede se concretize rapidamente. Com orientação, reflexão e acesso a um histórico de boas práticas, projetos locais se multiplicam com qualidade. “Começamos numa época em que o TJMG não tinha projeto implantado para cuidar dessas redes. Então, cada juiz que queria desenvolver uma atividade fazia isso como achasse adequado, dentro das circunstâncias possíveis na sua localidade. Entre 2016 e 2018, fui titular da 2ª Vara Criminal e da Infância e da Juventude de Caratinga. A comarca contempla 11 municípios, e cada um deles é um universo próprio em termos de proteção da infância, apesar de as estruturas, em tese, serem as mesmas. Há uma especificidade de funcionamento de acordo com a realidade local”, relembra a juíza Beatriz Machado.
Diante desse cenário, a magistrada entendeu que o Judiciário deveria estar integrado a outras instituições para alcançar efetividade. Como forma de melhorar a prestação de serviços e tecer um plano comum de qualificação das ações nessa área, ela elaborou o Prodiju — Programa Regional de Enfrentamento das Demandas de Infância e Juventude — e passou a fazer reuniões periódicas no salão do Tribunal do Júri, no Fórum, com pessoas de diversas instituições de cada um dos 11 municípios.
A bagagem de aprendizado se mostrou valiosa. “Depois de dois anos em Caratinga, fui removida para Timóteo, em 2018, e trouxe essa experiência prévia de trabalho em rede. Cheguei na iminência da Semana Justiça pela Paz em Casa de novembro, peguei a estrada e fui aos dois municípios que não são sede da comarca, Jaguaraçu e Marliéria. Depois me reuni na sede da comarca com prefeitos, vereadores, secretários municipais, servidores das áreas de assistência social, ensino e saúde e corporações policiais, para pensarmos o que poderia ser feito para aprimorar o atendimento em relação à violência doméstica e familiar contra a mulher. Desses encontros iniciais surgiram ideias, propostas e ações concretas, não só do Poder Judiciário, mas dos outros membros dessa rede, que estava em construção”, conta.
Divisor de águas
Segundo a juíza Beatriz Machado, um marco nesse percurso foi a realização, em março de 2019, na edição seguinte da campanha nacional, de um seminário, no auditório da Prefeitura Municipal de Timóteo. O evento lotou, atraindo público dos três municípios da comarca: além de servidores e juízes do TJMG, vieram pessoas das áreas de educação, saúde, segurança pública, da sociedade civil, do Ministério Público e das Polícias Civil e Militar.
“O propósito primordial era não só entender que a violência doméstica e familiar é um fenômeno significativo de criminalidade e um desafio à convivência pacífica em sociedade e à preservação de direitos igualitários, mas também internalizar que, para avançar, precisávamos nos unir, cumprindo, assim, uma das finalidades do planejamento de ação integrada que vem da própria Lei Maria da Penha. Era crucial entender qual era o papel de cada órgão na rede, para que propostas de encaminhamento de pessoas e de informações e estratégias de trabalho conjunto fossem mais efetivas. Era preciso conhecer os outros parceiros na rede”, defende.
Com uma programação de palestras da juíza e de representantes do MP, das Polícias Militar e Civil, de profissionais da saúde e da assistência social, o evento durou um dia inteiro. Foi discutida a criação de fluxos de trabalho e a lógica de encaminhamento das pessoas envolvidas com episódios de violência doméstica. “Fruto dessa parceria, perceptível em todos esses anos, foi que não só o Poder Judiciário, mas os outros componentes da rede conseguiram, individual e coletivamente, desenvolver novas estratégias de trabalho e alcançar resultados bastante produtivos para o público que precisa receber esses serviços com qualidade”, avalia a juíza.
Resultados
A partir da jornada de debates, foi selada uma parceria do TJMG com a Unileste, instituição de ensino sediada no município vizinho de Coronel Fabriciano, que possibilitou o oferecimento de um grupo reflexivo para homens respondendo a processos dessa natureza. Além disso, o município de Timóteo disponibilizou serviço de atendimento psicossocial contínuo para mulheres vítimas de violência doméstica. Desde o primeiro atendimento pela Polícia Militar, as vítimas são orientadas a buscar o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e setores de saúde, se for o caso. No município de Jaguaraçu, a Rede Sentinela foi aperfeiçoada, para que casos de violência doméstica sejam absorvidos para tratamento local multidisciplinar, e, em Marliéria, os serviços de atendimento às vítimas se valeram das iniciativas da comarca de formação continuada, compartilhadas também em atividades educativas para os alunos das três localidades.
“A PMMG também desenvolveu estratégias de aperfeiçoamento do serviço, seguindo, inclusive, diretrizes estaduais, e tem tido uma atuação muito relevante para a população. O Conselho Municipal de Direitos das Mulheres, órgão colegiado do Executivo, elaborou uma série de medidas para chamar a atenção da sociedade para o problema, como cartilhas e orientações, com cobrança de posturas de órgãos que têm a incumbência de dar andamento a políticas públicas para que elas sejam disponibilizadas mais rapidamente à população”, afirma a juíza Beatriz Machado.
A magistrada diz que a OAB/Mulher também desempenha um papel educativo significativo, e que os advogados se disponibilizam a assumir casos na condição de dativos, logo que são chamados pelo Poder Judiciário para a função. Polícia Civil, Ministério Público e o Judiciário têm se empenhado para acelerar o processamento dos inquéritos e ações versadas em violência doméstica. E a sociedade civil apresentou iniciativas relevantes na área, a exemplo da estruturação de casa de acolhimento regional de vítimas e seus dependentes, temporariamente necessitados de abrigo.
“Essa é uma parceria muito importante, que vem sendo fortalecida desde 2018. Embora ultimamente toda a região tenha assistido a um aumento das ocorrências de violência doméstica, para nossa felicidade recentemente vimos que em Timóteo houve, na contramão da tendência, uma discreta queda dos números, que deve ser comemorada. Nossa perspectiva e esperança é que essas sementinhas, lançadas há quase quatro anos, continuem frutificando. Com muita alegria vemos que todos os membros da rede têm feito a sua parte, no sentido de melhorar cada vez mais a integração e o desenvolvimento das atividades próprias de suas funções”, diz.
Expansão regional
A juíza conta que, percebendo o ambiente favorável à continuidade dos trabalhos e a receptividade e engajamento dos membros da rede, bem como a importância que o tema foi ganhando para além do limite da comarca, decidiu organizar em novembro de 2019 a 1ª Semana Integrada da Justiça pela Paz em Casa no Vale do Aço, uma iniciativa inédita no Estado.
“Minas Gerais só tem duas regiões metropolitanas (RM): a da capital (RMBH) e a do Vale do Aço, com sede em Ipatinga. São quatro municípios no núcleo dessa RM — Timóteo, Coronel Fabriciano, Ipatinga e Santana do Paraíso —, mas o Colar Metropolitano abrange cerca de 30 municípios. Apesar de a Semana Justiça pela Paz em Casa ser uma mobilização nacional, proposta a todas as comarcas mineiras, não havia notícia de uma ação regional integrada, para que esses municípios agissem de forma conjunta”, destaca.
Os juízes responsáveis pelas comarcas foram comunicados e concordaram com a proposta, assim como a Comsiv. Prefeitos, presidentes das Câmaras de Vereadores e secretários municipais do território abrangido também foram contatados. “A cerimônia de abertura foi no Fórum de Timóteo. Tivemos uma adesão expressiva e reunimos uma diversidade de atuações de qualidade em toda a área geográfica desse Colar Metropolitano. Vimos boas práticas, reuniões, palestras em escolas, em estabelecimentos de saúde e em associações comunitárias, ações de esclarecimento, medidas de empenho das polícias, audiências públicas do Legislativo Municipal. Os órgãos estavam alinhados no objetivo de chamar atenção para a questão e desenvolver atividades”, afirma a juíza.
Ela explica que, devido à pandemia do coronavírus, a ação metropolitana não foi repetida ainda, em vista da impossibilidade de promover aglomerações, mas os integrantes da rede prosseguiram com suas atividades, mesmo que com restrições. “As campanhas educativas se deram pelos meios de comunicação, e fizemos algumas lives”, exemplifica. Retomando as atividades presenciais, estão previstos para este mês de março um novo seminário de formação continuada da rede e o início do primeiro ciclo presencial de grupo reflexivo pós-pandemia. Além disso, está no horizonte a realização de novas edições da Semana Integrada. “Estamos somente aguardando as condições sanitárias se mostrarem mais propícias, para darmos continuidade a esse projeto”, conclui a juíza.